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Gorda e negra, a fotógrafa norte-americana Nona Faustine equilibra seu corpo nu em branquíssimos sapatos de salto alto para produzir autorretratos em locações nova-iorquinas que, há cerca de 200 anos, foram palco da violência escravagista.
"Por alguns instantes, eu me planto em uma cortina do tempo, destruindo dimensões, evocando a memória e o espírito daqueles que construíram a cidade de Nova York, chorando por eles e celebrando-os como seres humanos", diz Faustine, autora da série "White Shoes", em entrevista à Folha.
Pesquisando a região do Brooklyn, onde nasceu nos anos 1970 –ela prefere não dizer a idade–, e Nova York em geral, a artista revela locais em que as marcas da escravidão hoje passam despercebidas.
Um deles é Wall Street, centro do mercado financeiro. Ali funcionou, no período colonial, um mercado de escravos. Já os prédios da prefeitura e da Suprema Corte foram erguidos sobre o que foi um cemitério de escravos. "Para a construção dos edifícios, colocaram oito metros de terra sobre as tumbas, mas os corpos foram deixados no local."
Após participar de exibições coletivas no ano passado, as fortes imagens que produziu foram apresentadas no início de 2016, em Nova York, em sua primeira individual. "[As mostras] São uma chance de abrirmos portas para discutir os traumas e a injustiça da escravidão nos EUA."
Espécie de guerrilheira da arte, Faustine usa a irmã, Channon, para compor suas imagens. "Depois, entro no cenário, e ela bate as fotos sob minha direção", afirma a fotógrafa, que atualmente participa de uma exposição coletiva na galeria de arte do College of Staten Island.
Folha - O que é a série "White Shoes"?
Nona Faustine - São autorretratos nus em diversos locais que remetem para os 250 anos da história oculta da escravidão em Nova York, lugares desconhecidos ou esquecidos, enterrados sob o asfalto em que caminhamos todos os dias.
Vestindo apenas esses simbólicos scarpins brancos, eu documento locais em que a história se mostra de forma tangível. Conjunto memórias, atuando ao mesmo tempo em protesto contra a escravidão e em solidariedade a essas pessoas cujos nomes foram esquecidos e cuja contribuição até hoje não é reconhecida.
Por alguns instantes, eu me planto em uma cortina do tempo, destruindo dimensões, evocando a memória e o espírito daqueles que construíram a cidade de Nova York, chorando por eles e celebrando-os como seres humanos.
Por que ficar nua nas fotos?
A nudez fala sobre a história de opressão e racismo, sobre a forma como o corpo dos negros foi usado e explorado durante a escravidão. Fala sobre a história de mulheres negras expostas como figuras de circo, como Saartjie Baartman, mais conhecida como Venus Hottentot. Fala sobre a brutalidade contra a mulher negra, a opressão e a violência que ainda hoje existem no mundo inteiro.
Há muitas questões envolvendo o corpo feminino, negro e gordo, incluindo sua presença –ou falta de presença– na mídia e nas artes. A nudez é essencial para expor esses pontos.
Qual o significado dos sapatos brancos?
Eles representam o patriarcado branco do qual as pessoas de cor não conseguem escapar, o ideal de beleza ocidental ao qual as negras não podem aspirar. Basicamente, representam as relações entre europeus e africanos e a assimilação forçada.
Qual sua imagem predileta?
Cada uma é muito especial para mim. Wall Street era a que mais me assustava, antes de produzir as fotos. A cena é literalmente no meio da rua, não há como se esconder. Fiquei completamente exposta, totalmente vulnerável. Eu não sabia se conseguiria fazer as fotos sem ser presa ou atropelada.
Mas consegui: fiquei no ponto em que escravos eram leiloados há 250 anos, e tive um momento de reflexão profunda. Sentir o pulsar da cidade, enquanto os carros passavam por mim, de pé sobre um banquinho, foi uma experiência que nunca esquecerei.
Como as pessoas reagiram?
As pessoas geralmente davam uma olhadinha e seguiam em frente. Os nova-iorquinos não se surpreendem facilmente. Nós estamos acostumados com filmagens e shows televisivos nas ruas, mas somos curiosos. Em Wall Street, eu fiquei parada no meio do tráfego, com os carros passando ao meu lado. Nenhum motorista buzinou nem gritou comigo. Fiquei chocada!
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