VILNEI HERBSTRITH
(BRASILIMPRENSALIVRE@GMAIL.COM)
Era sexta, muito quente. O sol batia de rijo e parecia que iria fritar tudo o que estivesse no caminho do bolicho da esquina. Final de tarde. "Esqueceram de avisar o tio Pedro que era para dar um refresco para os pobres mortais aqui embaixo." Até o cusco pretinho que, serelepe, sempre buscava uma sobra de "bóia" por aqui, parecia bicho-preguiça e mal se mexia, mesmo diante da promessa de um resto de costela, sobra do meio-dia. "Tá tudo dominado, mas a ceva ainda vai levar uma meia hora para gelar. Daí nos vingamos." Ele nos olha meio que de ladito e sentencia: "Bahhh tchê, bota fora essa geladeira e compra um isopor, rssss... Ruim demais". Nem a dita cuja conseguia domar o calorão denso e que parecia grudar na pele e causar lentidão em tudo. Até as filosofias do trauma da minhoca diante das cem perninhas da centopeia, segundo Freud, estavam fadadas ao fracasso. Não tinha clima, sentenciava o vesgo.
– Me diz uma coisa, seu Argemiro???
– Digo, vivente. Mas nada de prigunta difícil...
– Se o senhor fosse autoridade e tivesse poder de fazer alguma coisa, o que faria por este canto de terra de Deus?
– Ah, isso? Oia, isto é facilzito. Capinava tudo que era mato. Consertava os “buraco” da estrada, pintava os “fio” de rua, arrumava jeito de empregar este povo todo nem que fosse com obra da “prefetura” e não deixava ninguém nas “fila” de saúde, atrás do seu dotor. Botava luz em tudo quanto é beco e cuidava pra não apagar “di” novo. Pegava toda aquela gentarada que ganha bem e fica “nos” ar-condicionado e levava pras vila com papel e lápis na mão. Batia de porta em porta e “preguntava” o que cada um precisava. Eles iam anotar tudo, pra aprender, e “ajeitá” logo, sem “demorá” demais nem “deixá” pra mais tarde. Ia cuidar da cachorrada. Dava remédio de verme pras crianças e cestão pros mais pobres. Todo mundo que tinha fome ia comer e em troca ajudava nas “capina”, nas “construção” de escola, de muro, na “verredura” das “sujera” das “sarjeta’. Ia fazer colégio por tudo. Muito colégio, que o povo tem que “aprendê” pra não “sê” burro que nem eu e ter serviço. Contratava um monte de professora e botava por todo o canto. Arrumava bola e outros “brinquedo”, ensinava os de rua e desocupado a “plantá”, “fazê” alguma coisa para vender, ocupava as “cabecinha” pra não pensar coisa do demônio o dia todo. Levava brigada e polícia pras “vila” pra falar pros “piá” das “coisa” ruim que “acontece” com quem pega o que é dos “outro”, com quem não respeita a casa, a vida, a família dos “outro”. Ia pegar remédio de quem tem sobrando e não precisa mais e “preguntá” pros “doutor” o que ainda é bom, pra dar pros “outro” que ainda precisam. Furava poço no chão nos “lugar” onde a água demora a “chegá” quando falta ou onde a turma não tem dinheiro pra pagar a tal “Corsã...” Ensinava como meu avô tinha a usar catavento pra “enchê” bateria de carro e “poupá” luz. Levantava bem cedo com o “pessoar” todo aquele do ar-condicionado, para ir pra rua o dia todo “descobrí” em cada vilinha ou beco o que cada um queria e precisava. Ia “assiná” no cartório o prometido, pra “cumpri” e não me chamarem de mentiroso, que meu pai, finado que Deus o tenha, sempre me disse que isto de não “fazê” o que se disse que ia “fazê” é coisa do demônio. Tapava com cano as “sanga”, que dali só sai doença ruim ou água que invade os “barraco”, quando chove muito e o rio se revolta. Declarava guerra pras “empresa” que deixasse “faltá” água ou luz pro povo que paga os “imposto”. Decretava que ninguém ia “ganhá” mais do que três “salário mínimo” nos “emprego” da prefeitura e mandava os “empregado” tudo ir pra rua, no sol, no mormaço, “fazê” alguma coisa que preste. E botava no jornal e nas “rádio” os “nome” dos “vereador” que não “fosse” nos “eleitor”, toda hora, ver se ainda queriam ele bem, se estava fazendo o que tinha dito que ia fazer quando vinha “pedi” voto. E se andasse na rua e um só viesse me criticá, pegava o vivente na hora no carro “oficiar” e ia já “deixá” o cara contente. Ia “resolvê” o problema dele. Usava o dinheiro que dão praquele monte de secretário e gastava com a meninada. Dava caderno, chinelo de dedo, feijão, arroz, uns “guizado” e fruta. Deixava só uns dois ou três pra “ajudá” de verdade. Ia “ajudá” os campo como eu nas “plantação”, que sem isto não se come. Deixava a cidade “bunita’ e limpinha, que todo mundo deve “tê” orgulho de onde mora. Ia “desmanchá” o “gabineti”. Fazia um em cima de um caminhão “pros” “despacho’ e vivia sempre na rua atrás dos “problema”. É isto.
– Podia se candidatar, seu Miro. Que acha? – me olhou atravessado, como quem diz “quem pode, não faz, eu fora”. Mas não disse mais nada. E apesar do nosso objetivo comum esperando gelar as botejas, senti uma pontinha de tristeza nos seus olhos fundos de caboclo de pele queimada pela lida do campo. Ele faria mesmo tudo isso, com certeza. Fiquei com a certeza de que se um dia o descobrissem, ali pelo canto, o elegiam na hora, apesar do pouco estudo, que lá fora era trabalho logo depois de aprender a ler e pronto. Era o programa de governo dos sonhos de todo mundo.
O dono do barzinho à beira do rio Jacuí resumiu:
– Seu Vernei, não estraga o Miro. Se eles, os de lá, engravatados, quisessem, já tinham resolvido tudo. Simples assim. Só pensam neles.
E eu cá comigo. E pelo jeito, nem neles, porque quem ganha para resolver e simplesmente mente ou se omite, trabalha contra si mesmo. Então taí. Se toparem com um Argemiro mais ou menos como o descrito, não lhe falem de política. Ele quer continuar a ser feliz. Até o pretinho que finalmente foi atrás dos ossos da costela me rangeu os dentes. Como seria bom e fácil deixar todos contentes. Mas agora deu, já devem estar geladas. E não estou aqui para filosofar sobre os problemas do mundo.
Tchau.
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