"A terra plena de espiritualidade", para a qual se deslocam milhares de estrangeiros todos os anos, em busca de "iluminação interior", a Índia ostenta uma insuportável característica: os casos de estupro se multiplicam de modo estarrecedor.
Prestes a ultrapassar o Brasil como a sétima economia do planeta, a Índia patina ao tentar controlar o avanço desse tipo de crime. Lá, uma mulher é violentada a cada 25 minutos. E com frequência se atribui a culpa à própria vítima
Prestes a ultrapassar o Brasil como a sétima economia do planeta, a Índia patina ao tentar controlar o avanço desse tipo de crime. Lá, uma mulher é violentada a cada 25 minutos. E com frequência se atribui a culpa à própria vítima
Por: Fernanda Allegretti
Indianos esperam para votar nas eleições parlamentares de 2014 — mulheres e homens aguardam em filas separadas(Channi Anand/AP)
Com mais de 800 milhões de eleitores, de um total de 1,2 bilhão de habitantes - o que a coloca no posto de maior democracia do mundo -, a Índia coleciona contradições. O mesmo país que, neste ano, deve superar a China em crescimento - 7,2% - tem quase um Brasil inteiro, 200 milhões de pessoas, vivendo em situação de extrema pobreza. Embora exporte para potências estrangeiras alguns dos melhores engenheiros e tecnólogos da atualidade, tem cerca de 80% da população que mal conseguem assinar o nome. O trânsito nas grandes cidades é espantosamente caótico, porém menos de 2% das pessoas possuem carro. Na última lista de bilionários da revista americana Forbes havia 90 indianos, 28 deles estreantes no levantamento, contudo, o atual premiê, Narendra Modi, se elegeu tendo como uma de suas principais bandeiras a construção de banheiros públicos - as ruas são frequentemente usadas como privadas pelos cidadãos. Seria mais do que suficiente parar por aqui, mas eis que se impõe a contradição das contradições. Frequentemente associada à ideia de uma "terra plena de espiritualidade", para a qual se deslocam milhares de estrangeiros todos os anos, em busca de "iluminação interior", a Índia ostenta uma insuportável característica: os casos de estupro se multiplicam de modo estarrecedor.
Segundo o Escritório Nacional de Registros Criminais do país, os casos de estupro aumentaram 26,7% entre 2012 e 2013. Pelas estatísticas atuais, uma mulher é violentada a cada 25 minutos. Só em Nova Délhi, em dez anos, houve uma variação da ordem de 329%, o que rendeu à cidade a alcunha de capital mundial do estupro.
Há poucas semanas o governo tentou encerrar uma discussão que vem ganhando fôlego desde que o país endureceu as leis de violência sexual, em 2013: o fato de o estupro marital, ou seja, aquele cometido pelo marido, não ser passível de crime. Em um comunicado endereçado às Nações Unidas, o ministro do interior, Haribhai Chaudhary, tentou sustentar a posição oficial. "O conceito de estupro marital, como é conhecido internacionalmente, não pode ser aplicado ao contexto indiano por vários fatores: analfabetismo, pobreza, valores, costumes, crenças religiosas, o fato de a sociedade tratar o casamento como um sacramento etc", observou ele. O anúncio surtiu o efeito contrário e as críticas vieram de forma avassaladora, afinal, o que choca no país não são só os números, mas principalmente a maneira como a sociedade, incluindo a elite política, encara o problema: mais como uma contingência do que como um crime a ser combatido a todo custo.
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Narinder Nanu/AFP
Estudantes indianas fazem aula de defesa pessoal(Narinder Nanu/AFP)
Essa mentalidade está tão incrustrada na Índia que, até o momento, as mudanças na legislação - que agora prevê maior tempo de reclusão para estupradores e pena capital no caso de morte da vítima - não foram suficientes nem mesmo para reduzir a barbaridade das ocorrências. Em abril, o pai, o tio e o irmão de uma adolescente de 16 anos foram presos, em Calcutá, após serem acusados de violentar a garota repetidamente. Um mês antes, uma freira de 71 anos foi estuprada por um bando de quatro homens que assaltou o convento onde ela morava, em Ranaghat. Em outro caso hediondo, embora não incomum, ocorrido no final de 2014, a mãe de uma garota de 6 anos descobriu que a filha havia sofrido violência sexual na escola que frequentava, em Bangalore, depois que a menina reclamou de dor nas partes íntimas.
Em números absolutos, em se tratando de estupros, a Índia ainda fica atrás de outros países. Em 2013, foram reportados 34 mil casos - quase 10 mil a mais que em 2012. No Brasil, no mesmo período, foram mais de 50 mil. Enquanto a Índia contabiliza 2 estupros a cada 100 mil pessoas, os Estados Unidos têm 28,6 a cada 100 mil. "Ocorre que, por aqui, apenas 10% dos casos são levados à polícia, pois as vítimas e suas famílias temem sofrer preconceito", diz a cientista política e ativista social Ranjana Kumari, diretora do Centro para Pesquisas Sociais de Nova Délhi. "Outro triste diferencial é que, na Índia, as poucas ocorrências que chegam às autoridades não são solucionadas e os criminosos não vão para a prisão." Em 2012, por exemplo, dos 706 casos de estupro registrados em Délhi um único culminou na condenação do criminoso. Vale frisar: a Índia ganhou a pecha de "país dos estupros" não só pela quantidade, mas especialmente pela "normalidade" com que encara a questão.
Algo que, com certeza, pesa para a falta de rigor na resolução dos casos é o entendimento que se tem no país do papel do homem e da mulher na sociedade. O hinduísmo, religião de 7 mil anos professada por 78% da população indiana, sugere que a mulher adore o marido como a um deus. Os casamentos são arranjados entre os parentes e, após o matrimônio, a mulher passa a pertencer à família do noivo. Nesse contexto, pior do que não conseguir um marido, o que depende, em boa medida de manter uma reputação ilibada, é perdê-lo antes de procriar.
Fernanda Allegretti/VEJA
Indianos recém-casados cumprem ritual matrimonial no Rajastão(Fernanda Allegretti/VEJA)
A cidade de Vindravan, conhecida na mitologia hinduísta como o local de nascimento do deus Krishna, ilustra bem as dificuldades a que são submetidas as indianas de famílias mais tradicionais. Por suas ruas nubladas de poeira, em meio a dezenas de macacos que fogem das matas devastadas, circulam 40 mil viúvas, quase todas vestidas de branco - e algumas com a cabeça raspada. Renegadas pela família dos maridos mortos, via de regra em conflitos regionais, e sem a menor possibilidade de se casar novamente, elas se despem de toda a vaidade e passam o dia rezando para - suprema ironia! - o deus do amor, Krishna. Sobrevivem graças à comida e ao dinheiro doado pelos templos - o equivalente a 50 centavos por dia. Narayani Sah, de 73 anos, vive em Vindravan há mais de quatro décadas: "Meu marido morreu na guerra do Paquistão (1971). Ficamos casados apenas seis meses e nem a família dele, nem a minha, quis ficar comigo".
Viúvas na cidade de Vrindavan(Raveendran/AFP)
Quase setenta por cento dos indianos ainda moram em vilas rurais. Enquanto os homens vão trabalhar nas cidades mais próximas, cabe às mulheres todo o serviço de casa, incluindo ordenhar as vacas e carpir a roça. Elas não só são vistas como incapazes de ganhar dinheiro, mas também como uma fonte de despesa. Embora seja proibida desde 1961, a tradição do dote permanece sólida. Muitas vezes, a família da noiva precisa se desfazer de todas as economias a fim de satisfazer às exigências dos parentes do noivo, que pedem cabras, eletrodomésticos e, dependendo da situação financeira, até vistos de imigração. O conservadorismo tribal está retratado no recém-lançado 13 Men (13 Homens), livro-reportagem da jornalista indiana Sonia Faleiro, autora do best-seller Beautiful Thing (2009). Em sua obra mais recente, Sonia conta a história real de Baby, uma jovem de 21 anos que foi amarrada e estuprada por 13 homens, na vila onde nasceu, no oeste do estado de Bengala.
O desequilíbrio na chamada razão sexual é a base de uma das justificativas mais recorrente para o aumento de estupros no país. A maioria da população é do sexo masculino. No último Censo, de 2011, a Índia tinha 37 milhões de homens a mais do que mulheres - o equivalente à população do Canadá. Entre 1901 e 2011, a razão de bebês do sexo feminino para o sexo masculino caiu de 972 a cada mil para 940 a cada mil. Há regiões onde a diferença é ainda maior. Em Damão e Diu, na costa Oeste, para cada mil homens há 618 mulheres. A desigualdade não é fruto de uma anomalia genética e sim de uma preferência pelo sexo masculino, que culmina em uma série de abortos deliberados. O próprio governo indiano estima que, em 20 anos, 10 milhões de meninas tenham sido mortas por seus pais ao nascer ou após testes de determinação do sexo.
Naturalmente, um país tão complexo não comporta generalizações. É evidente que existem famílias que não veem suas filhas como um estorvo e que apoiam suas escolhas. Para a professora de direitos humanos da Universidade Harvard, Jacqueline Bhabha, fundadora da ONG Alba, voltada a mulheres e garotas de países em desenvolvimento, a população mais jovem está conseguindo mudar a maneira de pensar da sociedade indiana: "Contudo, eu sei, esse é um processo lento e longo. O país é muito desigual. De qualquer maneira, a violência contra a mulher, que por anos foi ignorada, finalmente virou foco de atenção".
Os casos de violência sexual na Índia passaram a atrair mais o olhar das autoridades locais e do mundo exterior em dezembro de 2012, quando Jyoti Singh Pandey, uma estudante de 23 anos, morreu em decorrência de um estupro praticado por seis homens, em Nova Délhi. O bando usou um veículo que se assemelhava a um ônibus para enganar a vítima e a um amigo dela, que embarcaram com o intuito de voltar para casa, após uma sessão do filme As aventuras de Pi. O ataque foi tão brutal que a jovem teve os intestinos destruídos e morreu após 13 dias de hospital. A inédita repercussão do crime estimulou os indianos a irem para as ruas pedir justiça. Foi o maior protesto contra agressão sexual da história do país, que culminou no endurecimento das leis e na sentença à morte de quatro dos assassinos; um quinto se suicidou na prisão e o sexto, menor de idade, foi enviado a um reformatório pelo período de três anos.
Na maior parte da Índia, é incomum ver casais andando de mãos dadas. O afeto do gesto é reservado aos amigos homens(Fernanda Allegretti/VEJA)
Endurecer as leis, claro, não basta. É preciso fazer valer as punições previstas e investir em ações que ajudem a mudar a mentalidade de uma sociedade que parece viver um apartheid de gêneros em pleno século 21. Praticamente não se vê no país meninos brincando com meninas ou grupos mistos de amigos. As escolas são quase todas divididas por sexo. Em março, quando o governo baniu o documentário da BBC India's Daughter, (veja entrevista com a cineasta ao final da reportagem) que apresenta entrevistas com os estupradores de Jyoti Singh Pandey, boa parte da população apoiou. O próprio Narendra Modi declarou, em recente entrevista à revista americana TIME, que não se trata de cercear a liberdade de expressão, e sim de proteger a identidade da vítima. Entretanto, na ocasião do crime, não foram poucos os políticos e líderes religiosos que a culparam a vítima. Talvez a mais célebre declaração tenha sido feita pelo líder do conselho de Haryana, Sube Singh Samain: "As garotas deveriam se casar aos 16 anos, assim teriam os maridos para satisfazer suas vontades sexuais. Não precisariam sair por aí".
Não surpreendente que nem mesmo as badaladas atrizes de Bollywood estejam dispostas a desafiar a situação vigente. Praticamente nenhuma delas aceita fazer cenas de beijo e, mesmo quando estão fora do set, evitam intimidades. Certa vez, Karina Kapoor, uma das maiores celebridades do cinema local, foi vista beijando o namorado em uma festa, em Mumbai. Fotografada por um fã, que divulgou as imagens na internet. Karina negou ser ela a aparecer no clique: "Eu não sou esse tipo de garota. Tenho um nome a zelar", apressou-se em dizer. As produções de Bollywood, vale lembrar, custam milhões de dólares. Mas essa é apenas mais uma contradição do filme da vida real na Índia.
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